internet das coisas

Ensaio Tropixel #1 - Relato

Enviado por efeefe, sab, 04/26/2014 - 22:01

Durante as preparações do Festival Tropixel, no ano passado, surgiu o tema da qualidade da água nos rios de Ubatuba. Em particular falava-se sobre o rio Acaraú, que vem lá da Sesmaria já perto da serra, passa ao lado da Estufa II - onde está localizada uma estação da SABESP -, e em seguida também recebe as águas que vêm do córrego da Praia Grande, para enfim atravessar a Rio Santos, cortar o bairro do Itaguá e desaguar no mar. Por conta do próprio trajeto do rio, grande parte das conversas sobre a poluição de suas águas - e em consequência do mar no Itaguá - está carregada de preconceitos e desconfianças. Um dos objetivos do Ensaio Tropixel era experimentar com possibilidades de gerar dados concretos que possam ajudar nessas conversas.

Rio Acaraú - Foz

Durante o Tropixel em outubro, a pedido de representantes do Itaguá Azul - organização que sugere que o Acaraú é um dos maiores responsáveis pela poluição da baía no centro de Ubatuba -, organizamos uma reunião com alguns dos pesquisadores e artistas presentes ao Festival. Estavam na reunião os finlandeses Tapio Mäkelä e Mikko Lipiäinen, Karla Brunet e Javier Cruz do Ecoarte na UFBA e Guima-san do Gypsyware. Durante a reunião, me recordo de ter escutado do pessoal do Itaguá Azul a frase "nós queremos ter acesso a essa tecnologia". A tal tecnologia era a possibilidade de monitorar de maneira continuada a qualidade de água do rio. Escutamos que o problema das análises usuais é que elas são episódicas, o que insere variáveis demais no cenário. Os convidados do Tropixel trouxeram várias perspectivas para a questão, falando sobre sensores digitais de baixo custo, credibilidade de soluções alternativas e possibilidades de mobilização a partir de dados levantados. Mesmo sem planos definitivos de sequência do Tropixel - à época estávamos pensando em uma segunda edição do Festival já no primeiro semestre de 2014, mas ninguém tinha disponibilidade de tempo para fazer isso acontecer -, ainda assim decidimos que faríamos alguma coisa no mês de abril.

Na sequência do Festival, eu também estava conversando com o pessoal do Labmovel (na verdade era uma conversa mais antiga, que começou em 2012 durante o Circuito Artemov no Rio de Janeiro, ou bem antes). Eles estavam planejando as ações para este ano, e acabamos por entrar em acordo a respeito de um evento em Ubatuba. Acabamos aproximando as duas iniciativas no que veio a ser a primeira edição do Ensaio Tropixel. Concentraríamos nosso foco nas possibilidades de monitoramento de qualidade de água, e os testes do piloto seriam no rio Acaraú. O Labmovel ofereceria uma oficina - com o artista Fernando Velázquez - utilizando celulares e drones para fazer filmagens aéreas e mapeamentos, e o Ubalab convidaria Guima-san para trabalhar com sensores junto à realização da oficina. Tive algumas conversas com integrantes do Itaguá Azul, que ofereceram mais dados e confirmaram o interesse no evento.

A questão dos sensores é relativamente complexa: não existe um sensor específico que detecte "poluição" na água. Em geral, utilizam-se diversos indicadores. Podem ser levadas em conta medidas como PH, oxigênio dissolvido, temperatura, composição química do fundo do rio, aparência e cheiro da água, entre outros. Mas como estávamos trabalhando em um período curto, e em um primeiro protótipo que futuramente pode evoluir para uma solução mais completa, decidimos nos concentrar no oxigênio dissolvido. Adquirimos, por intermédio de uma conhecida do Leandro Ramalho, um kit de medição para conectar a uma placa arduino.

Oficina com Guima-San

A programação do Ensaio Tropixel começou no meio da semana, com uma oficina de hardware livre e sensores que Guima-san ofereceu aos meus alunos do primeiro ano no curso técnico de informática da Escola Tancredo Neves. Mostrou algumas possibilidades com arduinos, sensores, ativadores e afins. No dia seguinte, reunimos um grupo de pessoas interessadas em tecnologia na cidade de Ubatuba no Espaço Tec da Biblioteca Municipal para fazer os primeiros testes com o sensor de oxigênio dissolvido. O kit que estávamos usando traz junto um líquido de calibragem. Após ligar o sensor, utiliza-se o líquido para zerar a leitura. Depois, cada leitura demora cerca de dois minutos para estabilizar-se. Ao fim da noite, já havíamos conseguido obter algumas medições. Guima e Leandro chegaram até a desenvolver um script em python para obter as medições utilizando um velho tablet que tenho aqui, mas no dia seguinte acabamos deixando essa solução de lado por motivos de confiabilidade no hardware.

Sensor de OD

Hacklab no Espaço TEC

No fim de semana, Labmovel já estava pela área. Encontramos os participantes da oficina no Tancredo para contextualizar e demonstrar algumas aplicações de informação georreferenciada. Dos 27 inscritos, apareceram menos de 10 - mas isso faz parte de um sábado de sol em Ubatuba, eu suponho. Havia principalmente estudantes da Etec - Centro Paula Souza, e do Tancredo. Senti falta em especial de mais integrantes de organizações interessadas nas condições do Acaraú que pudessem nos ajudar a acessar os pontos críticos para avaliação da qualidade da água - como aqueles antes e depois da estação da SABESP. Sem esse conhecimento de campo, acabamos focando somente em outros três pontos: na confluência do córrego da Praia Grande com o Acaraú (onde o rio passa por debaixo da Rio-Santos); na rua Basílio Cavalheiro e no ponto onde ele deságua no mar. Estávamos conscientes de que uma medição pontual não significa nada, mas estávamos tratando aquilo como um protótipo que deve ser ampliado futuramente. Guima chegou a estudar a possibilidade de fazer sensores com material reciclado ou de baixo custo, mas isso vai ficar para um segundo momento. Da mesma forma, a ideia de fazer diversos sensores interconectados em rede, alimentando um sistema online, precisaria de mais tempo e investimento para ser implementada a contento.

Introdução à Oficina no Tancredo Neves

Coletando amostrasDe todo modo, saímos para fazer as medições com um grupo animado. Alguns ajudavam a coletar amostras da água, o que exige delicadeza. Qualquer agitação na amostra já pode modificar os níveis de oxigenação. Outros ajudavam a preparar o contexto, encontrar pontos de interesse, ou então acompanhavam os voos do drone Phantom 2 comandado por Fernando Velázquez. Duas alunas carregavam celulares com GPS registrando o trajeto e fazendo imagens já georreferenciadas ao longo do caminho. Ao fim da tarde, já tínhamos um quadro que confirmava o que esperávamos. No trecho perto da Rio-Santos, os níveis de oxigenação da água do Acaraú são horrendos. Dali para a frente, a água melhora um pouco até saír para a baía - ainda poluída, mas já razoavelmente melhor. Infelizmente, não fizemos as medições acima da estrada - onde elas seriam ainda mais necessárias. Mas como prova de conceito já funcionou muito bem. Foram geradas também algumas imagens aéreas interessantes para contribuir com o mapeamento do rio.

Fernando Velazquez - Imagens Aereas Ensaio Tropixel 1

Na manhã do domingo, o Labmovel instalou-se no terminal marítimo no canto direito do Itaguá para demonstrar resultados da oficina. Fernando Velazquez exibiu algumas imagens aéreas captadas na tarde anterior. Guima contou sobre os testes com sensores e alguns conceitos por trás. Eu demonstrei o mapa que montei na plataforma Mapas Coletivos com imagens e trilhas registradas. O secretário do Meio Ambiente de Ubatuba, Juan Prada, estava presente e contou mais sobre o rio Acaraú e outros rios da cidade.

Apresentação final

Como primeira experiência de evento menor e mais focado, o Ensaio Tropixel foi bastante interessante. Ajudou a conscientizar algumas pessoas a respeito de condições físicas do rio - incluindo seu traçado, e implicações do desenvolvimento urbano sobre ele. Mas fundamentalmente permitiu um pouco mais de aprofundamento do que um festival no qual diversos assuntos competem uns com os outros. Para mim particularmente foi uma oportunidade de aprender sobre alguns temas técnicos. Mais ainda, aprendi sobre diferentes camadas da composição não somente do rio como também de seu entorno ambiental, institucional e de imagem. Certamente, as próximas edições do Ensaio Tropixel já serão influenciadas por estas descobertas.

 

Veja também a documentação gerada pelo primeiro Ensaio Tropixel:

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O Ensaio Tropixel #1 foi uma parceria entre Ubalab e Labmovel, e contou com o apoio da Escola Municipal Tancredo Neves, Prefeitura de Ubatuba e Ecotrip Hostel. Labmovel esteve em Ubatuba com apoio da Secretaria Estadual de Cultura, dentro do Programa de Ação Cultural 2013.

Tecnologia por quê, mesmo?

Enviado por efeefe, seg, 04/14/2014 - 22:03

A edição 97 da revista A Rede vem com um artigo meu na seção raitéqui. Publico abaixo a versão original do artigo, um pouquinho mais extensa. A revista traz também uma matéria sobre internet das coisas com algumas citações a provocações que eu fiz em conversas com a Áurea.

Como grande parte dos desenvolvimentos contemporâneos, as tecnologias da informação chegam em diferentes ritmos e disposições a grupos sociais diversos. Para alguns, parecem significar a libertação das amarras de uma sociedade pós-industrial cuja nova configuração é fragmentada e baseada nos fluxos em múltiplas direções. Estes privilegiados acreditam que, a partir do uso instrumental das novas tecnologias, podem chegar a criar espaços de liberdade e autonomia, ao mesmo tempo em que valorizam novas formas de sociabilidade e de criação do comum. Para eles, o horizonte é repleto de oportunidades inovadoras, com a promessa de mercados à espera de boas ideias e que ao mesmo tempo produzem conhecimento que é generosamente oferecido à sociedade. Para outros, a chamada era da informação não passa de um conjunto de expectativas relativamente nebulosas que usualmente são traduzidas somente no incremento de suas oportunidades de consumo (preferencialmente com um simultâneo aumento em sua capacidade de endividamento). Com frequência, nem isso acontece: a tecnologia costuma ser usada somente como instrumento de controle, monitoramento e contenção de desvios.

O complexo que faz girar a internet comercial trata estes dois extremos da mesma forma: como combustível indiferenciado de uma máquina baseada na exploração do valor das relações sociais, inclusive as comunicações particulares que acreditamos serem privativas. Para essa articulação entre as corporações de TI, a indústria da publicidade e do entretenimento (que compõem uma só área integrada, não esqueçam) e, implicitamente, o setor militar e de "inteligência", qualquer uso das tecnologias que proponha transformações profundas na sociedade deve ser neutralizado o mais rapidamente possível.

Esse contexto é cada vez mais evidente em uma época que já testemunhou manifestações de rua - em grande parte articuladas pela internet mas posteriormente instrumentalizadas pela mídia corporativa -; revelações de nomes como Julian Assange e Edward Snowden que sugerem a ampla utilização de redes sociais para informar instituições dedicadas à espionagem e controle de informação em nível internacional; além das incessantes tentativas de controlar as liberdades fundamentais à internet como instrumento de comunicação humana.

No mês passado, um post de Anahuac de Paula Gil [http://www.anahuac.eu/?p=335] levantou uma discussão importante a respeito do possível esvaziamento do movimento software livre brasileiro. Ao longo da última década e meia, o país alcançou destaque internacional decorrente do apoio institucional ao software livre e à cultura livre. O tempo mostrou que grande parte desse apoio era mera retórica ou oportunismo midiático, mas a comunidade de usuários e desenvolvedores tinha de fato potencial, entre outros motivos por conta de sua articulação com movimentos sociais cuja referência básica não era o mercado. Entretanto, as diversas camadas de ferramentas que facilitam ao máximo os relacionamentos, a publicação na web e o empreendedorismo tecnológico têm como consequência a neutralização desse potencial. À medida em que menos pessoas dedicam-se a aprender e dar forma a novas ferramentas de comunicação, e ao mesmo tempo surgem oportunidades rápidas de prestar serviços a um mercado em crescimento, é supostamente natural que haja menos desenvolvimento de tecnologias realmente transformadoras. Quando alguns dos nossos maiores talentos dedicam seu tempo a preencher espaços do mercado comercial, a sociedade tem muito a perder.

Tudo isso aponta para a necessidade de repensar as bases nas quais se situam os projetos e programas de inclusão digital. Historicamente, essas iniciativas partiam de um princípio de compensação. Ou seja, entendiam que as novas tecnologias de informação oferecem oportunidades de inclusão, principalmente por conta da articulação de novas habilidades de comunicação pessoal com um tipo de sociabilidade que poderia subverter hierarquias. Mas essas oportunidades chegavam à sociedade de maneira desequilibrada. Os projetos de inclusão digital propunham-se, então, a oferecer infraestrutura tecnológica àquelas camadas da população que não tinham acesso a tal infraestrutura por seus próprios meios, de maneira a equilibrar a equação. Essa é uma visão que no mínimo deve ser interpretada como conservadora, porque vê a sociedade como estável em torno de construções determinadas - o trabalho, a escola, a comunidade local, a família - e no topo destas construções o digital surgiria como simples aspecto adicional. Ou seja, as pessoas precisariam adaptar-se às novas possibilidades criadas pelas tecnologias para continuarem ocupando o mesmo papel na sociedade. Seriam, assim, mais vítimas do que atores da revolução digital. Entretanto, um dos maiores potenciais da comunicação digital reside justamente na capacidade de engendrar arranjos sociais que escapam a estas configurações conservadoras. Não se trata mais de garantir a manutenção de determinado papel social, e sim de criar novos e inovadores papeis.

Quando surgiram os telecentros, uma de suas características mais relevantes não era o fato de oferecerem mero acesso a computadores ou à internet, mas fundamentalmente sua capacidade de atrair cidadãos a utilizarem novos formatos de espaços públicos. Não somente como transeuntes - aqueles que circulam por um lugar -, mas como membros da sociedade que ocupavam aqueles espaços. E ocupavam espaços cuja função ainda não estava totalmente determinada. Ao contrário de outros espaços públicos - a escola, a biblioteca, a repartição, a praça -, a função objetiva do telecentro não estava clara. Era espaço de formação para o mercado, mas também era espaço de sociabilidade, de formação geral, de experimentação e aprendizado sobre artes. E essa indeterminação pode ter sido justamente o que fomentou o alto nível de inovação que estes espaços possibilitaram ao longo da última década.

O fato de que mais e mais iniciativas de inclusão digital tenham aberto mão dos espaços compartilhados em favor de uma lógica - consumista e individualista, a meu ver - do acesso doméstico à internet parece ser mais um indício negativo das tendências atuais. Somando-se ao alerta feito por Anahuac e à rendição quase total às redes sociais corporativas, o quadro é bastante obscuro. Como fazer para escapar a essas armadilhas?

O telecentro precisa ser repensado. Já passou-se quase uma década e meia desde que eles se estabeleceram como modelo [Ver http://blog.redelabs.org/blog/para-que-serve-um-telecentro]. Hoje em dia, pensar em laboratórios experimentais comunitários enquanto espaços em branco, espaços nos quais novas formas de sociabilidade podem emergir e se desenvolver, parece ser o mínimo. Hacklabs e Makerspaces sugerem novos caminhos, nos quais a apropriação crítica de tecnologias torna-se mais importante do que o mero acesso à rede. O importante é perceber que, se queremos espaços que proponham transformação social efetiva, não podemos nos contentar com uma lógica de ocupação de vagas, de estatísticas de atendimento ou mesmo de mero empreendedorismo comercial. Precisamos pensar nos futuros que queremos criar, e dedicar nosso tempo a criá-los. Voltar a pensar na importância de insistir no livre, no aberto e na cultura ao mesmo tempo questionadora e acolhedora que envolve esses adjetivos.


Felipe Fonseca é coordenador do núcleo Ubalab [http://ubalab.org]. Foi um dos fundadores da rede MetaReciclagem [http://rede.metareciclagem.org]. Vive em Ubatuba/SP, onde organiza o Tropixel [http://tropixel.ubalab.org] e leciona na Escola Técnica Municipal Tancredo de Almeida Neves. Acabou de terminar sua dissertação de mestrado pelo Labjor/Unicamp, focada nos laboratórios experimentais em rede.

Cidades, coisas, pessoas

Enviado por efeefe, sab, 08/04/2012 - 00:30

Um número crescente de iniciativas ligadas à cultura livre, à mobilização em rede e à apropriação crítica de tecnologias têm se dedicado a refletir sobre a cidade como construção “hackeável”, e a propor maneiras de interferir nela. É um importante desdobramento que busca superar a oposição artificial entre “virtual” e “real”, e reabilitar a cidade como espaço primordial de disputa na busca de transformação efetiva.

Mais do que lançar ideias soltas na rua, essas intervenções, projetos e articulações se propõem a interferir na própria construção da cidade enquanto infraestrutura coletiva. Dois anos atrás eu me perguntava sobre o paralelo que via entre a maneira como a MetaReciclagem se aproxima das tecnologias de informação e o tipo de mudança que as redes colaborativas podem proporcionar às cidades. Hoje vejo muitas hipóteses sendo colocadas a prova.

Um grupo heterogêneo que circula em torno da Casa de Cultura Digital, em São Paulo, tem atuado em algumas dessas questões. O Baixo Centro vai além de simplesmente retratar digitalmente a cidade, e propõe uma retomada criativa e bem-humorada das ruas. O Arte Fora do Museu dá visibilidade para expressão artística que de outro modo seria invisível, soterrada pela pressa, pelo anonimato e pela rotina da vida urbana. O Ônibus Hacker põe em prática uma ideia sonhada por vários coletivos ao longo dessa última década: um laboratório móvel que se arma onde quer que haja interesse e uma extensão de energia elétrica. Outros grupos e formações, como o Labmóvel, também têm investigado essa relação entre a lógica colaborativa que emerge das redes digitais e o mundo lá fora. Assumindo uma vertente mais crítica, o Laboratório de Cartografias Insurgentes buscou produzir “mapas políticos” que retratassem as remoções e despejos no Rio de Janeiro em decorrência dos megaeventos vindouros. Em comum entre todos esses projetos, a incorporação do espaço público como território compartilhado.

Naturalmente, assuntos como mapeamento colaborativo têm pipocado por todos os cantos (eu mesmo já relatei o Labx, que teve um eixo chamado “geografia experimental”, e algumas brincadeiras com mapeamento aéreo de baixo custo nos céus do Rio de Janeiro). Para quem se interessa especificamente por ferramentas e metodologias de mapeamento, estamos organizando (mais!) uma lista de discussão chamada geolivre. Apareçam por lá.

Do outro lado do Atlântico, o diálogo entre ruas e redes também é foco de atenção. Inspirado pelo Movimento 15M, pela ideia de openness e pelas diversas iniciativas recentes de cartografia cidadã, o Medialab Prado organizou em Madrid a conferência “City Open Interface”. O mesmo Medialab Prado foi também responsável, junto com a Science Gallery, pela realização na Irlanda do Interactivos?’12 Dublin, que reuniu projetos e ideias sobre “hackear a cidade”. O evento se propunha a desenvolver protótipos funcionais para mudar a relação das pessoas com o entorno urbano. É interessante perceber que os projetos selecionados têm uma pegada emergente, de baixo para cima. Ainda mais levando-se em conta que Dublin foi sede do Media Lab Europe, uma espécie de sucursal do Media Lab do MIT. O encerramento do projeto em 2005 é usualmente interpretado como um fracasso na replicação de um modelo que funciona bem nos Estados Unidos, mas que não é necessariamente a resposta adequada para outras localidades (como eu já sugeria aqui). Apesar do nome em comum, a proposta do Medialab Prado - na qual as tecnologias surgem como facilitadores para a construção coletiva das cidades - vai em direção oposta ao modo usual de agir do Media Lab do MIT (que acredita que um software de planejamento urbano pode ajudar a construir as cidades do futuro).

Essa é uma diferença importante que surge entre a perspectiva dos laboratórios experimentais em rede e aquela dos laboratórios de mídia em um formato mais tradicional. Estes de certa forma distanciam-se da pulsação local, transformando-se em lugares alheios a seu entorno para se concentrar em soluções replicáveis a contextos diversos. Enquanto eu entendo essa forma de agir, acredito que ela não deveria ser a única possível. Já propus anteriormente que os labs experimentais podem se tornar interfaces entre a rede e a rua. Pode ser interessante então reconhecer algumas dinâmicas presentes na cidade enquanto construção coletiva, a fim de saber como melhor operar.

Muitos ativistas da tecnologia livre (entre os quais humildemente me incluo) sofremos frequentemente de uma certa síndrome do novo mundo. Identificamos lógicas que funcionam na comunicação digital e logo queremos transpô-las para todas as áreas do conhecimento. É um impulso potente e muitas vezes criativo, mas que pode sofrer de uma superficialidade tremenda. A primeira observação que faço é que a questão urbana, as dinâmicas sociais e a infraestrutura de circulação vêm sendo estudadas há séculos. Suas dinâmicas, inclusive aquelas que se assemelham a pontos críticos da cultura digital - em especial a tensão entre controle e organicidade - já foram analisadas de forma bastante abrangente. Algumas boas ideias (e outras péssimas) foram testadas na prática com populações inteiras. Em vez de jogar na lata de lixo todo esse histórico, podemos buscar pontos de composição com ele - que podem inclusive nos ajudar a entender a própria tecnologia de uma forma diferente.

Bernardo Gutiérrez, jornalista espanhol residente em São Paulo, escreveu recentemente sobre cidades e copyleft, buscando paralelos entre um ensaio urbanístico de Henri Lefebvre e uma compilação de escritos de Richard Stallman. Falando sobre assuntos distintos - respectivamente a cidade e o software -, ambos afirmam uma condição de realidade em construção, de obra inacabada, em relação à qual podemos assumir uma eterna possibilidade de interferência.

É essa transitoriedade que sugere ser possível mexer nas cidades de modo análogo ao software. Mas essa analogia não deve ser interpretada de maneira absoluta. O que interessa aqui é justamente a abertura à modificação, e não uma redução da realidade cotidiana a meros sistemas informacionais. Por mais que a cidade possa ser modificada de forma parecida com o software livre, ela em si não é simplesmente uma descrição digital abstrata. A série de documentários “All Watched Over By Machines of Loving Grace”, produzida por Adam Curtis para a BBC (e disponível para download no Archive.org) mostra a influência que as teorias da cibernética adquiriram ao longo da segunda metade do século XX. Dá exemplos dos efeitos nefastos decorrentes da utilização em larga escala de princípios da cibernética para o dia a dia da administração da economia, da política e da sociedade. Para funcionar, esses princípios supõem a redução de toda ação humana, todo fenômeno natural, toda a realidade à nossa volta, a uma representação matemática. Mas a sociedade não cabe em um modelo matemático. Ela não é o mero circuito de circulação, comércio e “entretenimento” (seja lá o que isso for). Ela é, isso sim, lugar privilegiado da contradição, onde intimidade e anonimato estão lado a lado, onde harmonia e hostilidade podem ser esperadas a todo momento, onde precariedade e oportunidades se chocam.

Merece atenção especial o discurso de “cidades inteligentes” atualmente em construção, alimentado por interesses poderosos inspirados nessa visão simplista da cidade. É assustador perceber a total ignorância que os representantes da indústria têm sobre o tipo de ameaça que essas tecnologias trazem para futuros menos iluminados. Sistemas de controle podem parecer uma boa ideia, mas se caírem em mãos erradas podem ter consequências desastrosas. Mais assustador ainda é ver como são bem relacionadas essas pessoas. Vendem projetos milionários para administrações municipais, que as implementam de cima para baixo, mais uma vez ignorando totalmente a complexidade de implicações que esses projetos têm na sociedade. Não fazem ideia de como realmente se dão os fluxos dentro das cidades (que para Adam Greenfield já são inteligentes em si mesmas, independente de dispositivos interconectados).

Juan Freire lidera o grupo de trabalho “Ciudad e Procomún” do Medialab Prado, que propõe “uma resposta crítica e construtiva ao modelo de cidades inteligentes”. Entre suas preocupações está a disseminação de vários tipos de sensores interconectados e controlados pela administração pública para monitorar em tempo real a vida urbana (a tal “internet das coisas” muito oportunamente questionada pelo IOT Council). Freire afirma que o problema desse tipo de urbanismo não é a tecnologia, mas a reiteração de um modelo de cidade centralizada e hierárquica.

Escrevendo sobre “a cidade da internet das coisas”, André Lemos afirma que pensar sobre tecnologia para cidades não se trata somente de automatizar a comunicação entre objetos informacionais para aumentar a eficiência do dia a dia, mas também de “produzir novos discursos, novas narrativas sobre o urbano (do se perder, de serendipidade, do ficar invisível aos sistemas de detecção, de ressaltar ruídos e padrões que escapem da utilidade estreita).” A cidade não pode ser administrada como uma partida de SimCity. Infelizmente, isso é justamente o que o impulso pelo controle acaba gerando. Um vídeo da Globo News incorporado no artigo de Lemos retrata a demonstração que o prefeito do Rio faz de seu mais novo videogame, digo, Centro de Operações. Ao longo da reportagem, eu tive a sombria impressão de assistir a uma cena de flashback de algum filme de ficção distópica - aquela cena em que o filme volta no tempo para mostrar quais foram os fatos que acabaram levando a um futuro indesejável. O vídeo está disponível, por enquanto, aqui:

Essa gramática do controle, sobre a qual já escrevi anteriormente, baseia-se justamente na redução da cidade ao modelo cibernético. É justamente esse ponto cego em relação à complexidade da política cotidiana - política aqui entendida como arte da vida coletiva, em sociedade - que escapa às mais bem intencionadas tentativas de diretamente transpor lógicas típicas das redes digitais para o espaço urbano.

No começo desse ano eu acompanhei a certa distância algumas das discussões sobre transparência e controle social da administração pública. Grande parte do que se propõe nesse tema em âmbito municipal trata somente de dados de execução orçamentária - divulgando quanto a prefeitura gastou com cada área de administração. Poucos envolvidos chegam a refletir sobre abrir todo o processo burocrático não somente aos olhos da população, mas também à cabeça ou mesmo aos braços dela. Em outras palavras, o cidadão só pode assistir enquanto a prefeitura gasta o dinheiro - não é chamado a dividir a responsabilidade pelas decisões e em nenhum momento é convidado a ajudar na prática. Mesmo que eu tenha disposição, tempo, conhecimento e ferramentas para ajudar no jardinamento da praça ao lado da minha casa, não sou autorizado a fazê-lo, para não atrapalhar o funcionamento da máquina burocrática para a qual não passo de um número.

Nas redes e nos grupos que discutem essas coisas, costumamos porpor um tipo de relação que se opõe à submissão da sociedade ao funcionamento das novas tecnologias. Acreditamos que, pelo contrário, as tecnologias é que deveriam ser adaptadas para ajudar a construir uma sociedade mais participativa, harmoniosa, aberta à diversidade e justa. Para isso, é preciso ter bem claro que a mera digitalização, interconexão e circulação de informação sobre o espaço urbano não vai criar a cidade que queremos. Na verdade, se essa captura e gerenciamento de informação se presta a fins de controle, enquadramento e exclusão, ela está indo justamente no caminho contrário. Antes uma cidade desconectada do que uma cidade conectada a uma central de controle autoritária!

2012 é ano de eleições municipais. É uma época crucial. Em muitas cidades de todos os portes, os assuntos “cidade digital” e “cidade inteligente” têm ganhado espaço nas campanhas eleitorais. Além disso, o cenário de esvaziamento conceitual nas políticas públicas federais de acesso à tecnologia nos puxa de volta para o local como espaço legítimo de disputa de visões de mundo. Nos últimos dois anos, perdemos muito espaço a partir da imposição de uma lógica mercantilista à visão antropológica que o Ministério da Cultura previamente liderava. Da mesma forma, ganha espaço em Brasília a retórica simplista das “cidades digitais” - que dá importância muito maior à criação de redes wi-fi municipais que oferecem acesso doméstico privado do que a espaços comunitários que proporcionem vivência, troca, experimentação e aprendizado mútuo. Não podemos deixar que essa tendência se torne hegemônica.

Para a grande maioria das pessoas que leem esse artigo, a cidade é uma realidade inescapável. Está logo ali, atravessando a porta. Ela pode parecer opressora, perigosa, impossível de mudar. Mas é só começar a procurar pra descobrir que tem mais um monte de gente tentando. Como fazer pra encontrar essas pessoas? Use as redes!


Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo.

PS eu havia incluído o vídeo errado do prefeito do Rio. Fiz a correção acima.

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