Cidades digitais, a gramática do controle e os protocolos livres
Minha busca por alternativas locais, sustentáveis e justas para o desenvolvimento de inovação e tecnologias livres aponta cada vez mais para a necessidade de maior articulação entre duas classes de estruturas informacionais que se sobrepõem: a cidade e as redes digitais. Eu escrevi aqui no ano passado sobre a perspectiva de cidade como sistema operacional. Essa aproximação não é inédita. Na mesma fronteira mas talvez em sentido inverso, o artigo Reading the Digital City, publicado no Next Layer por Clemens Apprich, analisa justamente a influência que a ideia de cidade exerceu nos primeiros anos de popularização da internet, e como essa influência foi usada para estabelecer relações de controle e poder:
"Não é por acidente que a cidade tenha sido escolhida como uma das mais significativas metáforas para os primeiros dias da internet. A cidade tem (como o Ciberespaço) uma origem militar e é definida (pelo menos simbolicamente) por muros cujos portões constituem a interface para o resto do mundo. (...) A interface determina como o usuário concebe o próprio computador e o mundo acessível a partir dele."
Naquele momento, em meados dos anos noventa, procurava-se entender como os processos sociais aconteceriam em um espaço de fluxos para o qual não existia precedente histórico. Lançou-se mão da cidade como modelo de organização e identidade, mas também como instrumento para estabelecer limites. Eu ainda não tinha refletido, no contexto contemporâneo das redes, sobre a questão da cidade também como controle e segregação de identidades. Talvez porque o urbanismo que eu vivencio cotidianamente seja algo mais permeável do que a referência histórica de Apprich, um pesquisador austríaco. Por aqui não temos muralhas separando a cidade histórica de seus desenvolvimentos posteriores, como ainda pode ser visto em Barcelona, Londres e outras cidades europeias. Na minha experiência, pensar no limite entre cidades é visualizar uma placa na estrada, cercada de vazio. Até que ponto isso se torna uma barreira cultural quando se fala em urbanismo? A ordem urbana europeia, invejada por boa parte da classe média brasileira, é considerada por alguns pesquisadores uma grande castradora da inovação, como sugere John Thackara em "Plano B":
"Grande parte do nosso mundo é simplesmente projetado demais. Controle demais sobre o espaço público é prejudicial para a sustentabilidade dos locais. Várias cidades europeias estão levando em consideração a promulgação de zonas livres de design, nas quais o planejamento e outras melhorias de cima para baixo e de fora para dentro serão mantidas a distância para permitir os tipos de experimentação que podem surgir, sem planejamento e inesperadamente, de um território selvagem, livre de design."
Quando nossas realidades que tendem muito mais à complexidade - senão ao caos - entram em contato com essas referências trazidas de fora, é natural que surja conflito. Rob Kranenburg chamou minha atenção para dois artigos sobre o megaprojeto de monitoramento urbano no Rio: na Fast Company e em um site coreano. É claro que usar tecnologias de informação para prever deslizamentos e enchentes é necessário. Os problemas são a gramática do "centro de controle" (no mínimo uma ilusão em uma cidade como o Rio) e a pretensão de que esse tipo de projeto esgote o assunto "cidades inteligentes". Centros de informação para prevenção de emergências são somente a ponta do iceberg em um cenário urbano recheado de dispositivos de produção, transmissão e análise de dados. Mas minha questão para esses projetos é: a quem pertencem os dados gerados? Como acessá-los? A tendência é o surgimento de todo um novo domínio de informação relevante para toda a sociedade, e ninguém está debatendo sobre como essa informação vai circular. Grande parte dos atores envolvidos só querem saber quanto dinheiro ou quanta exposição na mídia essas tecnologias vão gerar.
Um elemento comum, mas raramente analisado, nas propostas de "cidades inteligentes" é justamente a tensão entre controle e emergência (como já comentei aqui). Não podemos ser ingênuos. A cidade, enquanto tecnologia de organização de informação, é usada frequentemente como instrumento de manutenção das relações de poder. O controle não é exercido somente sobre a circulação de pessoas, objetos e informações, mas também sobre as maneiras como a própria cidade se desenvolve. Isso está presente em grande parte das cidades do Brasil (e certamente do mundo): o envolvimento escuso da indústria imobiliária com as campanhas políticas em troca de favorecimento futuro, a gentrificação dos centros e o urbanismo midiático que adota a lógica do espetáculo e se relaciona mais com a mídia do que com a população. São iniciativas impostas de cima para baixo, sem dialogar com aquilo que é a própria essência da cidade: as redes formais e informais de circulação de informação. Essa é uma limitação que inevitavelmente vai se repetir nos projetos de tecnologias aplicadas ao cenário urbano.
Mesmo iniciativas bem intencionadas acabam geralmente refletindo a lógica do controle. No post sobre laboratórios como interfaces eu já havia criticado o projeto Venus, de Jacque Fresco, como exposto no documentário Zeitgeist Addendum. Vou me permitir falar mais um pouco sobre isso porque Fresco foi novamente entrevistado para o terceiro filme, Zeitgeist - Moving Forward. O documentário tem alguns momentos interessantes, como mostrar o potencial transformador das iniciativas de prototipagem e fabricação doméstica como o RepRap de Adrian Bowyer. Mas pretende (uma vez mais) indicar a supremacia da ciência sobre a economia, a religião e a política. E entende esses três assuntos de maneira superficial, não reconhecendo que são em última instância o resultado de alguns milênios de evolução de nossas necessidades materiais, espirituais e sociais. Sugerir que se jogue tudo isso fora para viver uma vida controlada e homogênea é uma insanidade.
Jacque Fresco tem uma imaginação ímpar. É certamente um visionário. Mas passa a impressão de ignorar a história humana (talvez só tenha lido ficção científica). Sua proposta de cidade ideal, além de provavelmente entediante, também tem alguns problemas de condicionamento. Não por acaso, um dos elementos centrais de seu projeto é o "centro de controle", com um "mainframe" que gerencia sensores espalhados por toda a cidade e permite o monitoramento de tudo o que acontece. Subliminarmente, cria-se uma assimetria entre quem administra (controla) a cidade, e a população que só tem acesso restrito aos dados gerados. É a mesma lógica que opera em experimentos corporativos como os dos laboratórios da francesa Orange: sensores vão gerar dados, que serão úteis para tomar decisões que vão refletir no gasto público (energia, manutenção, semáforos, etc.) É a administração das cidades (em conjunto com as próprias empresas que desenvolvem a infraestrutura) quem decide o que vai ser feito com esses dados.
O problema, obviamente, não são os sensores ou o monitoramento em si. No ano passado, enquanto visitava com o grupo do LabtoLab o espaço La Tabacalera em Madrid, debatemos rapidamente sobre as câmeras espalhadas pelo prédio (uma antiga fábrica de tabaco), cujo centro de controle ficava justamente no Espacio Copyleft daquele centro cultural. Alguns artistas e ativistas levantaram a possível contradição entre o copyleft e as câmeras. Eu discordei, argumentando que o problema não eram as câmeras em si, mas a potencial relação de poder embutida nelas: quem é que tem acesso à informação que elas capturam e transmitem? Se toda a comunidade tivesse acesso às câmeras, talvez elas pudessem ser entendidas como a radicalização da coletividade, em vez de invasão de privacidade. Não era o caso, mas eu estava tentando desconstruir aquela associação direta entre monitoramento e controle. Nesse sentido, o problema não são os dispositivos que geram dados, mas quem é que está autorizado a acessar e manipular esses dados e a informação que vão gerar. Em outras palavras, interessa saber se o sistema é desenhado para o controle ou para a participação.
Cidades conversacionais
Adam Greenfield publicou no Urban Scale o artigo "Além da cidade inteligente", no qual discorre sobre a importância de padrões abertos em um cenário urbano iminente no qual diversos objetos geram informações que são disponibilizadas aos cidadãos: com o objetivo de "alavancar o poder do processamento de informação em rede para possibilitar um modo mais leve, flexível e responsivo, até brincalhão, de interagir com a diversidade metropolitana".
Para isso, ele considera fundamental que esses objetos adotem protocolos abertos e publiquem dados de forma aberta. "A vantagem primordial dos dados abertos nesse contexto é que eles resistem a tentativas de concentração poder através da alavancagem de assimetrias de informação e diferenciais de acesso. Se uma pessoa tem esse conjunto de dados, todas têm". Ele associa o potencial inovador em ver a cidade como software de código aberto: "assim como o programador iniciante é convidado a aprender, entender e até incrementar - 'hackear' - software de código aberto, a própria cidade deveria convidar seus usuários a demistificar e reengenheirar [N.T.: desculpem pelo pelo neologismo] os lugares nos quais vivem e os processos que geram significado, no nível mais íntimo e imediato". Mais tarde, escreve "se por nenhuma outra razão do que as expectativas serem tão altas, qualquer sistema distribuído com uma superfície de ataque tão ampla quanto uma cidade enredada precisa verdadeiramente da segurança acentuada que acompanha o desenvolvimento aberto. Ou seja, a internet das coisas precisa ser aberta." Greenfield acredita (e eu também) na criatividade potencial que reside nas pontas, na apropriação cotidiana, na liberdade potencial que acompanhar os protocolos abertos.
Entretanto, em paralelo à especificação da questão essencial dos protocolos é necessário refletir sobre e esclarecer a maneira como entendemos a cidade do futuro: se queremos uma mera máquina para a manutenção do status quo e alimentação do sistema capital-consumista, ou uma construção participativa que possibilite o pleno desenvolvimento do potencial humano, criativo e econômico de cada indivíduo e grupo que nela vive. Eu acho muito relevantes algumas iniciativas que aparentemente passam ao largo da discussão mais específica sobre tecnologias da informação mas acabam cumprindo o papel fundamental de debater a cidade como uma tecnologia em si. Um exemplo é a rede Nossa São Paulo, que busca transformar a cidade em um espaço conversacional cooperativo.
Tecnologia é poder. Marcelo Braz mandou na lista MetaReciclagem a dica de um texto de Langdon Winner que toca nesses aspectos:
"A esperança de que novas tecnologias trarão liberdade e democracia tem sido um tema comum nos últimos séculos. Às vezes essas idéias são razoáveis ou até louváveis. O que elas têm em comum é uma crença de que a inovação traz uma grande benção e que não envolve imaginação, esforço ou conflito. O que freqüentemente ocorre, entretanto, é que a forma institucionalizada da tecnologia – na indústria, nos meios de comunicação etc – incorpora poder econômico e político."
Pensar a cidade como sistema operacional invariavelmente leva ao conflito com poderes estabelecidos localmente, em especial aqueles que se baseiam na manutenção de privilégios através da escassez de informação. É um conflito implícito, e essa é uma de suas qualidades. Seu impacto profundo se revela gradualmente, e a partir de determinado momento se torna irreversível. É uma corrida de resistência, e estamos nela pelo longo prazo. O desenvolvimento de tecnologias de informação e sua incorporação ao cotidiano (a partir de laboratórios experimentais locais baseados em tecnologias livres) é um braço importante dessa busca.