Entrevista para revista A Rede

  • Posted on: qui, 08/18/2011 - 20:35
  • By: efeefe

Patrícia Cornils esteve em Ubatuba no mês passado para me entrevistar para a revista A Rede. O resultado está aqui:



Inovação em verde e amarelo


Como aproximar o conceito de inovação tecnológica, associado a tecnologias proprietárias e comerciais, à produção colaborativa e livre da cultura digital?

Patrícia Cornils


ARede nº72 agosto de 2011 - Felipe Fonseca, o efeefe, participou de vários projetos de cultura digital e inclusão digital. Entre outros, é integrante-fundador da MetaReciclagem, uma rede auto organizada de pessoas que propõem a desconstrução da tecnologia e seu uso para a transformação social. Ele reflete há um bocado de tempo sobre as potencialidades e os rumos dessas iniciativas.

Hoje, pesquisa como as redes digitais livres podem se apropriar da ideia de inovação. Sempre se debateu este tema no Brasil, porque nosso investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação é muito pequeno. Compramos tecnologias desenvolvidas em outros países. Em 2009, investimos somente cerca de 1,19% do Produto Interno Bruto em inovação, de acordo com dados do Ministério da Ciência e Tecnologia – o equivalente a US$ 24,9 bilhões. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse investimento foi, em 2008, de US$ 398,2 bilhões.

Esse volume limitado de recursos é investido por governo e por empresas para gerar patentes, conhecimento proprietário, para exploração comercial. E os lugares onde se faz essa inovação, dentro desse modelo, são as empresas e universidades. Um espaço muito limitado, em um país onde a população tem uma tradição de empreendimento e inovação: fazem parte dos traços culturais presentes nas culturas brasileiras a ideia de gambiarra, a criatividade para resolver problemas do dia a dia, e o mutirão, uma maneira de se organizar para resolver esses problemas coletivamente.

Como juntar esses dois mundos distantes um do outro? Pensando em um tipo de inovação com relevância social e educacional. Baseada em tecnologias livres, produção aberta e em rede, afirma Felipe. Em um livro lançado em maio de 2011, o Laboratórios do Pós-Digital, livre para ser baixado na rede, ele discute essa ideia com maior profundidade. Nesta entrevista, explica como sua pesquisa pode se encontrar com o trabalho realizado em telecentros e Pontos de Cultura, e com as pessoas que inventam maneiras de se apropriar de tecnologia no Brasil.

Qual a sua visão sobre o papel da tecnologia para a inclusão social?
Felipe Fonseca –
Há alguns anos critico as limitações do conceito de inclusão digital, que é muito simplista. Sugere que existe um jeito “certo” de usar as tecnologias. Eu acho que não existe esse jeito certo. Existem milhares de jeitos de usar tecnologias. Mas qual deles vai fazer mais sentido em sua comunidade? A gente fala em fazer cursos de editores de texto, de planilhas. Em muitos lugares, não faz o menor sentido. Tempos atrás, muitos projetos de inclusão digital proibiam as redes sociais. Proibiam Orkut, bate-papo, pois “as pessoas tinham que usar as tecnologias de maneira mais séria”. Na MetaReciclagem, a gente tentava chamar a atenção para o fato de que o uso divertido, inclusive para armar balada, descobrir coisas, ajuda a construir o ferramental necessário para se apropriar das tecnologias. Usar o potencial pleno das tecnologias passa por apropriar-se delas. A gente sai do foco na máquina, sai do foco específico no dispositivo que está usando, e passa a ter um foco em resolver problemas.

Os programas de formação de monitores orientados a projeto vão nessa direção?
Fonseca –
Eles têm potencial, mas ficam formais quando adotam uma linguagem de gestão de projeto corporativo, em vez de uma linguagem de mutirão. As culturas populares brasileiras têm uma das melhores metodologias de solução de problemas, de gestão aberta de projetos, que é a ideia do mutirão. As pessoas identificam um objetivo comum, se juntam para resolver uma coisa, depois se separam. Acho que a formação orientada a projetos é extremamente positiva, um grande passo adiante da mera questão de usar coisas, do que a gente chama de “formação de manobristas de mouse”. Mas não dá para ficar somente nisso. Fui jurado de um desses programas, vi alguns projetos. Por conta até de falta de repertório, os projetos são rudimentares, as pessoas acabam repetindo modelos. Não há uma formação de repertório orientada à inovação aplicada ao cotidiano. E os projetos que surgem são mulheres online, terceira idade, educação ambiental, modelos sugeridos por quem está fazendo aquilo. Claro que os problemas são parecidos em todos os lugares do Brasil e que qualquer espaço público de inclusão digital tem menos mulheres acessando. Portanto, fazer um projeto de mulheres online faz sentido. Mas há um potencial criativo nas culturas populares, e a gente não está atraindo as pessoas que têm esse potencial. Os espaços públicos de acesso à internet são um lugar ideal para desenvolver tecnologia socialmente relevante. A gente tem de atrair as pessoas certas e oferecer a elas desafios, não somente respostas. Os projetos de acesso à tecnologia estão preocupados em dar respostas e não em fazer perguntas.

Na MetaReciclagem, vocês resgatam o mutirão, a gambiarra. Como se dá o potencial criativo nessas iniciativas?
Fonseca –
Nas primeiras fases do debate sobre inclusão digital dizia-se que o povo brasileiro não é inovador, não é empreendedor, porque as pessoas não abrem empresas, não seguem os modelos tidos como certos. Isso é um preconceito com as culturas populares, que sempre foram, por necessidade, extremamente criativas, inovadoras, empreendedoras. Tudo depende da leitura. Você pode tratar um camelô como um contraventor ou como um empreendedor que usa as possibilidades que tem à mão. Desde o começo da MetaReciclagem, a gente teve a preocupação de valorizar o sotaque criativo típico do Brasil. A gente também dizia que não se tratava de as pessoas se adequarem aos modelos da sociedade superconectada, mas de transformar as tecnologias para que se adequem ao tipo de sociabilidade que existe no cotidiano. A gente começou a identificar um tipo de sociabilidade radical no Brasil. Uma coisa mais dinâmica, de certa forma superficial e também bastante acelerada de apropriação de tecnologia. O Fotolog.net, na época, fechou o cadastro para brasileiros, que estavam usando aquilo como loucos. No Orkut, todo mundo começou a reclamar que os brasileiros entravam em qualquer comunidade falando português. Havia uma sociabilidade que poderia ser potencializada pela rede e era muito mais natural para brasileiros do que para outros povos.

Vocês foram aprendendo isso ao longo do tempo?
Fonseca –
Sim. E nesse movimento de identificar traços da cultura brasileira descobrimos dois vetores. Um é o mutirão, essa coisa dinâmica e informal de juntar pessoas para resolver problemas. Isso se opõe ao grande vício do século 20, que é a institucionalização de ideias interessantes. O outro vetor é a gambiarra, que parte de uma inversão de perspectiva em relação à inovação, que também emerge por conta de todo o histórico de precariedade, de escassez de recursos do Brasil. Eu tenho de resolver um problema e em vez de esperar ter os recursos, o conhecimento ou o tempo adequados, resolvo do jeito que dá. Olho para o mundo. A gambiarra faz essa inversão, trata o mundo como um lugar cheio de recursos, abundante. E mesmo que eu não tenha as ferramentas certas, as pessoas necessárias, vou fazer.

Você falou da ideia da inovação aplicada à solução de problemas do cotidiano. Mas a ideia de inovação nunca foi muito usada, debatida, nos projetos de inclusão ou de cultura digital. Por que?
Fonseca –
Porque a inclusão digital tem esse vício de origem, no Brasil, de ir na linha de dar acesso a pessoas, reduzir a desigualdade. Muitos projetos são para corrigir diferenças históricas, econômicas, sociais. Ficam no discurso de usuário. Fomos formados como consumidores. O Brasil foi formado como mercado, primeiro para os ingleses, para os poderes coloniais, depois para os Estados Unidos e o mercado globalizado. Daí o vício de tratar a inovação como algo que sempre vem de fora, em uma caixa preta. Um dos fundamentos da MetaReciclagem é a desconstrução. No começo, era uma metáfora de uma coisa mais concreta, de abrir o computador e ver como é feito, como se troca uma parte... Depois a gente entendeu que tem um gesto simbólico nisso, que é desconstruir a ideia de tecnologia e entender por que aquela tecnologia existe, por que foi desenvolvida daquela maneira, por que vai ser usada.

É o que vai acontecer com os tablets?
Fonseca –
Aí, mais uma vez, é compra de inovação pronta. Estamos vendo e dizendo: “a gente também quer”. Dá para criar um paralelo com a declaração do Gilberto Gil, quando era ministro, de que o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe. Dizer “eu também quero isso” é importante, a gente não tem que ficar para trás. Mas há outra questão, que é “o que a gente vai querer depois”. Comecei a pensar em como estimular esse tipo de inovação. Como fazer para essa facilidade de criatividade, de solução de problemas não existir somente nas camadas populares, mas chegar às universidades, às pessoas que desenvolvem as tecnologias.

O desafio é juntar criatividade popular com desenvolvimento de tecnologias?
Fonseca –
Vejo uma mudança, muito lenta, não nos programas de inclusão digital de maneira estrutural, mas nas pessoas da ponta, que implementam projetos. Quando os Pontos de Cultura iniciaram, vimos que tínhamos muito mais a aprender com aquelas pessoas do que a ensinar. Há maneiras de organizar o esforço de uma comunidade, de fazer a informação circular, de criar engajamento e mobilização que a gente não fazia ideia de que existiam. Esses conhecimentos são mais importantes do que saber usar um mouse, fazer tal software rodar. Quem está nas pontas dos projetos começa a enxergar um universo de possibilidades e relacionar isso com um repertório de tecnologia. E tudo isso tem influência das tecnologias livres e abertas. Não só software livre, mas conhecimento livre, 
hardware livre.

E o que se pode fazer a partir disso?
Fonseca –
Tirar as tecnologias da rede e trazer para o cotidiano, a comunidade. Por exemplo: ter, aqui no meu bairro, em Ubatuba (SP), sensores de temperatura e pressão que avisam quando vai chover. Qualquer marinheiro sabe que, quando há uma mudança brusca de temperatura e pressão, vai chover. E aí entra o ponto de que o grande complexo corporativo, acadêmico, dos países centrais, está investindo em tecnologia proprietária. No Brasil, a gente tem essa inventividade cotidiana, essa sociabilidade e esse discurso do software livre está assimilado pelos formadores alternativos de opinião. Temos o potencial de juntar essas coisas e desenvolver caminhos livres. Um dos vários campos onde isso pode acontecer é a internet das coisas, a rede de dispositivos conectados. A gente fala para uma universidade brasileira sobre internet das coisas e eles pensam em celular conectado, celular na internet. Não é só isso, são sensores, ativadores, resultados aplicados no cotidiano. Automação de iluminação das cidades... quanto de dinheiro se gasta porque os sensores não são bem calibrados? Vários usos positivos de tecnologia estão sendo desenvolvidos por empresas para gerar tecnologia proprietária. Como a gente faz, no Brasil, para desenvolver alternativas livres para essas coisas, antes de alternativas proprietárias dominarem o mercado?

Tem gente fazendo isso em outros lugares?
Fonseca –
No ano passado fui à Espanha, para um evento do MediaLab Prado, o Interactivos. O foco do evento era em ciência de bairro, que é uma ampliação do conceito de ciência de garagem, do pessoal fazendo experimentos em casa. O que eles propuseram foi ampliar a ideia de ciência de garagem. Trazer essa facilidade de desenvolver experimentos científicos para ter resultados positivos nas comunidades. Eles desenvolveram captadores solares, maneiras de acumular e distribuir energia. Um inglês estava tentando transformar uma bactéria em sensor de poluição do mar – as bactérias mudariam de cor quando houvesse poluição. São coisas que surgem fora do ambiente esperado para a inovação acontecer, que geralmente é a academia ou as empresas. Essa é uma inovação com relevância social, não tem amarras de lucratividade, não tem que gerar rentabilidade. E tem dinamismo que não existe na academia porque a informação circula, não está restrita a autoridades e reconhecimento institucional.

Esse movimento existe aqui no Brasil?
Fonseca –
Começam a surgir aqui mais 
hacker spaces organizados como tais, que se alimentam do referencial conceitual e prático de 
hacklabs, dos fablabs. O pessoal do Garoa, no subsolo da Casa de Cultura Digital, em São Paulo (SP), é um exemplo interessante. O Lab de Garagem, também de São Paulo. O Puraqué, em Santarém (PA). O pessoal de Fortaleza (CE), que estava fazendo estações de tocar música com CD ROM de computadores velhos. Também gente ligada de maneira indireta à academia, núcleos dentro das universidades que acabam dialogando com coisas fora. O Lab Debug, na Universidade Federal da Bahia. É gente que tem formação técnica forte e está se juntando, se aproximando de pessoas que atuam mais no campo simbólico, de projetos políticos, artísticos, sociais. Pessoas de várias áreas querendo contribuir. Mas não há apoio para fazer as coisas; o Brasil não tem como sustentar laboratórios experimentais.

O que é um laboratório experimental?
Fonseca –
Nessa acepção que gente está usando, de laboratórios experimentais de tecnologia livre, de polos de tecnologia livre, são espaços dedicados a criação, transformação, modificação, desenvolvimento e desconstrução de tecnologias. O objetivo é juntar pessoas que têm interesse em desenvolver novas tecnologias e criar projetos e ações, de preferência colaborativas e livres. Laboratórios experimentais onde seja possível não só debater mas fazer protótipos de tecnologias. Mais importante do que a infraestrutura é a liberdade de experimentação, devem ser espaços livres de objetivos predeterminados. Não como uma universidade, uma empresa, uma escola, uma ONG, onde as pessoas precisam entrar já sabendo o que vão fazer. Um laboratório idealmente incorpora a liberdade de experimentação. A possibilidade do erro como resultado esperado. Isso é uma mudança de paradigma. Para transformar um telecentro, um ponto de acesso público, um laboratório de escola em um laboratório digital, não precisa de muito dinheiro, de muito equipamento, mas de uma mudança de postura. Os laboratórios não podem ser prestadores de serviços e as pessoas que atuam ali não podem estar dedicadas simplesmente a ensinar os outros a usar equipamentos, programas. É necessário apoiar o trabalho experimental. Essa é uma dificuldade que eu sinto, quando converso com pessoal de telecentros. Sempre me perguntam qual será o resultado do projeto que eu proponho. A gente tem de ter essa possibilidade de criar experimentação e as pessoas inclusive serem remuneradas para fazer coisas experimentais, mesmo sem resultados objetivos.

Como o Ministério da Ciência e Tecnologia poderia estimular essas iniciativas?
Fonseca –
É importante a aproximação do Ministério com o mundo livre, hacker, maker. Mas tenho medo de que fique uma coisa de lidar com isso como se fosse peculiar, “olha que bonitinho que eles estão fazendo”... e continuem os 90% do orçamento destinados à inovação que vai gerar patentes. Quando a gente fala em modelos de futuro, modelos potenciais de atividade econômica voltada à tecnologia e socialmente relevante, encontramos modelos que incorporam a facilidade que tem hoje de circular a informação e que liberam o conhecimento específico para fazer as coisas. No FISL 12, Jon Philips apresentou o Milkymist, um hardware que faz efeitos em vídeo em tempo real. Esse cara, junto com um grupo de cinco ou seis pessoas, criou um projeto desse dispositivo novo, que é fabricado na Ásia. A equipe é pequena e funciona como uma butique criativa de dispositivos, manda fabricar nas mesmas plantas de fabricação que todo mundo manda, só que a criatividade está contida no trabalho deles. Todos os esquemas para fazer o dispositivo estão na rede, para quem quiser fazer o equipamento sem precisar pagar, ou pagando quanto quiser. As características são essas: um grupo pequeno, altamente inovador e que promove a liberdade de multiplicação, sem controle sobre quem vai fazer uso daquilo. Quanto mais gente usar, melhor. Eles podem inventar outro. Não tem a ganância da indústria baseada na propriedade intelectual.

Como isso se torna uma alternativa de desenvolvimento econômico, social?
Fonseca –
O FCForum, fórum de cultura livre de Barcelona, na Espanha, publicou o estudo Modelos Sustentáveis para Criatividade na Era Digital, onde aponta caminhos de sustentabilidade para a criatividade e para a inovação. Os modelos do futuro não são os que a gente conhece, de uma grande indústria que domina a fabricação e cria um monopólio temporário. Em vez disso, o estudo trabalha com a ideia de sobreviver de generosidade, sobreviver em um mundo onde o conhecimento é abundante e não escasso. Há caminhos novos que a conversa com o MCT precisa incorporar. A ideia de software livre, de hardware livre e conhecimento livre pode ser aplicada a qualquer área – a mecânica de carro é conhecimento que pode ser liberado... Nessa perspectiva de conhecimento abundante circulando, a gente tem de criar novos modelos de sustentabilidade. E esses modelos são ligados à maneira com que o próprio software livre é desenvolvido, em pequenos grupos, dinâmicos, conectados em rede. O processo criativo é aberto e livre, documentando todas as etapas e fontes. Isso é mais profundo do que simplesmente publicar o resultado final como livre. O MCT tem de entender o que é esse livre, como faz para publicizar todos os processos, em vez de cair naquela coisa de “tem um instituto que vai criar tecnologia livre e está resolvido o problema”.

Você acha possível levar o modelo dos Pontos de Cultura para o Ministério da Ciência e Tecnologia?
Fonseca –
Sem dúvida. Muita gente que participou do projeto da cultura é mais ligada à tecnologia, à comunicação. Entramos no Ministério da Cultura porque foi onde surgiu a brecha, por várias confluências históricas e, principalmente, pelo papel do Gil. A ideia de levar para o MCT a inovação dispersa, distribuída, funcionando em rede, mais informal, que reconhece os saberes tradicionais e as demandas locais faz todo o sentido.