Ciência Comunitária

  • Posted on: sex, 11/18/2011 - 17:50
  • By: efeefe
Publiquei esse texto no blog do Festival CulturaDigital.Br e na área Rede//Labs do Arquivo Vivo. É também a base do meu pré-projeto de pesquisa no mestrado na Unicamp que começo ano que vem.
Na última década e meia, a crescente disseminação de tecnologias de comunicação em rede propiciou o surgimento e a potencialização de novas formas de criação de conhecimento, com base em arranjos sociais distribuídos e colaborativos. Essa tendência é patente por exemplo no movimento do software livre que, se já existia desde antes da internet comercial, acabou por ganhar massa crítica uma vez que indivíduos e grupos puderam usar a rede para aprender uns com os outros, resolver problemas, explorar novas ideias e publicar código-fonte para ser livremente apropriado e modificado. O resultado foi o surgimento de ecossistemas informacionais autogeridos e baseados em uma emergente ética hacker, impulsionando a evolução colaborativa de conhecimento comum. A comunicação em rede levou também sua influência a outros campos: a desintermediação radical da produção cultural a partir da disponibilização de conteúdo com licenças livres orientadas à generosidade intelectual, a multiplicação dos espaços para debate público com os blogs e redes sociais, a disponibilização ampla de recursos didáticos multimídia, e assim por diante. Em todas essas áreas, ganha força um vocabulário com termos como "livre", "distribuído", "colaborativo", "autogerido". Mais do que mera resistência à crescente pressão pelo controle comercial da chamada propriedade intelectual, essas experiências apontam para formas contemporâneas de aprendizado, criação de imaginário, identidade coletiva e invenção. Mais recentemente, o dinamismo das redes online que se dedicam ao desenvolvimento de conhecimento compartilhado tem também estimulado a criação de espaços físicos que se propõem a atuar como interfaces entre tais redes e os contextos locais. São os hackerspaces, fablabs, laboratórios experimentais - espaços abertos orientados à convergência, à descoberta e à troca. Situam-se na fronteira entre o desenvolvimento de tecnologias, a arte contemporânea, o design de produtos, a educação e o ativismo. Atuando de maneira dinâmica, e adaptável, esses espaços catalisam de formas diversas a criação de conhecimento, o aprendizado e a produção adequados aos tempos contemporâneos: não-lineares, enredados e coletivizados.

Da garagem ao bairro

Alguns desses espaços estão inseridos no movimento da "ciência de garagem" (ver artigo de Sergio Amadeu na revista A Rede. Os projetos que adotam essa perspectiva articulam de forma coerente as redes colaborativas online, o método científico, a facilidade de acesso a equipamentos e sensores eletrônicos - que geram dados a partir do ambiente e os armazenam, transmitem e modelam - e a crescente disponibilização de conhecimento científico através da internet. Propõem a realização de experimentos com culturas de bactérias, a aproximação entre as tecnologias digitais livres e os princípios da permacultura, a criação de alternativas para geração e armazenamento de energia, a geografia experimental e o mapeamento colaborativo de localidades, a utilização de conhecimento aplicado para intervir no espaço urbano e muitos outros temas de grande relevância para os tempos atuais. O renomado Medialab Prado de Madri realizou em 2009 um encontro chamado "Interativos: Ciência de Bairro", que propunha ainda um passo além da garagem: a utilização da ciência para dentro de comunidades e grupos sociais. O evento produziu dez projetos experimentais envolvendo dezenas de pessoas vindas da Europa, América Latina e Estados Unidos. Propunha a valorização da ciência desenvolvida em laboratórios amadores, aos quais credita a invenção da lâmpada elétrica, da radioatividade, dos antibióticos e do computador pessoal. Trata-se de uma proposta que, igualmente inspirada pelas redes colaborativas online, procura imprimir ao conhecimento científico a mesma fluidez e multiplicidade de usos que, como apontei acima, tem sido possível na produção cultural, na educação e no software livre. Existe aí um paralelo interessante: da mesma forma que a desintermediação da produção cultural, que gradualmente deixa de depender de grandes instituições e dá vazão à produção engajada e autônoma, também na ciência existe potencial para fugir às amarras burocráticas da academia e à orientação exclusiva ao lucro do mundo empresarial. De certa forma, trata-se de abrir o repertório da inovação para ambientes que muito necessitam dela.

Inovação

Inovação é uma ideia difusa, que pode ser entendida de múltiplas maneiras. Em geral, nos dias de hoje, se associa a inovação à criação de propriedade intelectual - invenções com o propósito fundamental de gerar lucro. É importante criticar essa visão e explorar caminhos conceituais, metodológicos e práticos para o estímulo ao desenvolvimento de inovação socialmente relevante, baseada em protocolos e conhecimento abertos, governança colaborativa e comunicação em rede. As redes online podem ser vistas como protótipos de novos arranjos para a criação e compartilhamento de conhecimento livre. É preciso pensar e fazer laboratórios experimentais como interfaces entre as redes colaborativas online e o espaço urbano, atuando na fronteira entre arte, tecnologia, educação, ciência, ativismo e sociedade.

Ciência

É notória a influência da ciência no imaginário contemporâneo - desde a "administração científica" até os "relacionamentos quânticos". É necessário, entretanto, questionar a apropriação superficial de seu referencial e sua submissão à lógica do espetáculo midiático orientado ao consumo. Até que ponto a emergência do movimento da "ciência de garagem" não está condicionada a essa visão ingênua da ciência? Qual posicionamento devem assumir espaços experimentais abertos, para que não se limitem a repetir brinquedos de laboratório de química infantil, experimentos rudimentares de mecânica clássica ou o mero monitoramento de ambientes? Como garantir que, por outro lado, não caiam na simples reprodução em menor escala da abstração alienante proporcionada pelo complexo industrial-acadêmico, que distancia do cotidiano a compreensão de conhecimento científico? O método científico pode ser utilizado também para a solução de problemas cotidianos? Que elementos da ciência podem ser trazidos ao dia a dia? Como eles podem se articular com a latente sabedoria popular sobre otimização de recursos e gerenciamento da escassez e da precariedade? São questões presentes e necessárias. O desenvolvimento em anos recentes de programas estruturados de universalização do acesso à internet - em escolas, ONGs e políticas públicas como telecentros, pontos de cultura e afins – ensaia o desenvolvimento de uma infraestrutura pública de comunicação em rede, dentro do espectro do que se convencionou chamar "inclusão digital". Mas que tipo de inclusão tais projetos proporcionam? São espaços passivos de preparação para o consumo, ou pelo contrário proporcionam a apropriação crítica de conhecimento tecnológico, de modo a proporcionar o pleno desenvolvimento do potencial criativo das pessoas que participam deles? Muitos desses projetos são virtuais espaços para o desenvolvimento aprofundado de ciência comunitária, conectados em rede e nela encontrando soluções para problemas locais. Como vamos aproveitá-los ao máximo?
Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo.